sexta-feira, 15 de junho de 2012

Memórias de Amargosa - Última Parte

 
Eis que chego ao último capítulo dessa viagem pelas minhas lembranças da Cidade Jardim. O exercício da memória é incrível, pois resgata nossos sentimentos sensações, além de nos manter conscientes e mais críticos em relação ao futuro. Chegar ao fim dessa série de textos não significa dizer que as lembranças acabaram. Não, elas “deram um tempo”, ficam processando no subconsciente até adquirirem forma para estarem aptas a serem traduzidas em texto escrito. 
Nesses cinco textos sobre a história da minha querida terra adotiva, é impossível não perceber que algumas informações escaparam, deslizaram por entre os dedos da memória. E a intenção é justamente que os leitores se apoderem dessas falhas e consigam tecer seu próprio fio de lembranças, dialogando com as que expus aqui. Não foi meu objetivo enunciar verdades absolutas, mas apenas memórias, que se transformam ao sabor das emoções e, como não poderia deixar de ser, ao sabor do tempo. 
Neste texto quero lembrar de pessoas, e nesse particular sei que muitas ficarão de fora, não porque sejam menos importantes, mas tão somente porque aqui não caberia tanta gente... E, em se tratando de lembrar, não poderia deixar de começar esse percurso pelo meu Pai. Há pouco mais de cinco anos ele evoluiu para outro plano, deixando para mim muitas lições, histórias e lembranças. Divergíamos no campo ideológico, principalmente na política, mas dava gosto discutir política com ele. Aliás, dava gosto falar de qualquer coisa com ele, assim como estudar Língua Portuguesa com o melhor professor que já conheci, e que me inspirou ao caminho do magistério. Quantos “chiquinhos” e “fulustrecos” passaram por sua vida, e tantos deles ouviram expressões inesquecíveis como a “batata grossa” ou a impagável “boboca”... Sem contar as histórias, nossa, ouvi tantas, principalmente aquelas da época do Seminário, que eram as que ele contava com mais entusiasmo. 
Aprendi tantas coisas, e o melhor é que nossas diferenças são uma fonte de aprendizados, que perduram até hoje. Lembro dele no Bar de Seu Nenga, jogando Pif-Paf com Doutor Elizeu, Seu Nenga e Paulo Boca. Era uma aula de conhecimento geral! Ainda lembro de uma grande bordão de Dr. Elizeu ao se referir à preferência por beber o whisky puro, sem gelo, ao melhor estilo “cowboy”: “Os escoceses levaram anos pra tirar a água do whisky, e sou eu que vou colocar?” O melhor médico do planeta tinha razão! Todos eles devem estar jogando uma partidinha em algum lugar, colocando o papo em dia, e olhando pelos seus aqui na terra. 
Ao lado do bar de Seu Nenga, Seu Beto alfaiate, com sua simpatia e inteligência, junto a Seu Hermógenes (que continua nos brindando com sua arte e sua alegria) traziam histórias e faziam daquela vizinhança um lugar especial da cidade. Não posso esquecer de Doutor Nilson Lomanto, em seu indefectível jipe, desfilando sabedoria e amor à natureza. Cresci ouvindo de meu pai as histórias de Doutor Nilson da época do Colégio Pedro Calmon. São tantos os personagens de Amargosa que não estão mais neste plano espiritual, e não tenho a pretensão de lembrar de todos eles, mas deixo aqui a minha gratidão a todos aqueles que construíram a história desta cidade encantadora, que hoje se vê modernizada e experimentando as benesses e os problemas desse processo. 
À medida que Amargosa deixa de ser a cidade tranquila das portas e janelas abertas, aumenta a saudade de um tempo em que, apesar das limitações, podíamos contemplar o fluir calmo do tempo, numa paisagem intocada, típica do interior relatado nos livros. Boa parte dessa paisagem foi engolida pelo “progresso”: casas, lojas, repartições públicas... restam fotos nas mãos dos mais afortunados ou na memória dos mais sortudos ainda, que tiveram a chance de contemplar o desavisado espetáculo da cidade, nas suas formas mais simples. A fachada do Cine-Theatro Pérola, do armazém de Hugo Nogueira, a mercearia de Seu Joel antes do incêndio, a barraquinha de revistas de Seu Irineu são alguns exemplos de uma Amargosa que não existe mais, mas não se perde na memória de seu povo. Cabe a nós, no presente, fazer com que essa cidade não se perca de si, de seu passado, de sua riqueza histórica, das lições que ainda pode dar àqueles que nela vivem e que dela tiram o seu sustento. 
Por último, mas não menos importante, abro espaço para lembrar de duas pessoas que fizeram parte da minha vida em Amargosa e que, há pouco tempo, foram trilhar outros caminhos em outro plano. O primeiro, o inesquecível Padre Zé Silva, que tão de repente desapareceu do nosso convívio, deixando um legado de fé e honradez, e com uma privilegiada visão racional da vida e do universo. E, ainda mais recente, Seu Rufino deixou a vida na terra, deixando também o exemplo de pessoa íntegra, de imensa simplicidade e caráter irretocável. Pessoas como Padre Zé e Seu Rufino só trouxeram o bem a esta terra, e certamente estão marcados na sua história. 
Amargosa é uma cidade especial. Não bastasse sua arquitetura, suas ruas e praças belas e aconchegantes, sua rica (e ainda pouco explorada) história, tem um tesouro de valor imensurável: o seu povo. As pessoas de ontem, as de hoje e as que ainda virão são a sua maior riqueza. Cabe à nossa e às futuras gerações cuidar para que a memória desta cidade e das pessoas que ajudaram a construir sua história nunca se perca. A preservação da memória de Amargosa e do seu povo é um trabalho cotidiano de cada um de nós, e deve ser incentivado e valorizado constantemente, para que sempre tenhamos a possibilidade de conhecer o nosso passado, para assim cuidar melhor do nosso futuro.

Um comentário:

  1. Muito legal André!!! Seus textos sobre as lembranças de Amargosa são sempre enriquecedores, cheios de "imagens" que até quem não viveu esses momentos, como eu, consegue rapidamente visualizar e re-visitar cenas e estórias que fizeram parte do passado de Amargosa. Mais que isso, esses textos nos faz perceber o que mais atrai as pessoas pra Amargosa, o que mais faz com que aqueles que saem daqui tenham uma imensa vontade de retornar e o diferencial que a cidade tem que deixa seus moradores presos e fieis a essa Terra. A história mostra a verdadeira identidade cultural presenciada e negociada a todo momento em Amargosa. É isso que encanta! Mais que a beleza natural, mais que a arquitetura, mais que a riqueza, o seu povo". Além da forma com que a tradições dos moradores interagem com aqueles que chegam de fora ano a ano, dia a dia, desde os imigrantes, desde os traseuntes, comerciantes e aventureiros da "linha de ferro" até os turistas, os universitários, os empresários e outros tantos que vem pra Amargosa em busca de boas oportunidade de viver com qualidade.

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