Ainda não havia amanhecido quando
cheguei à varanda. Meus olhos brilhavam ao sabor das lembranças, e aquela
música distante me lembrava das noites não dormidas. É inevitável não saborear
o fluir do tempo e se embevecer com seu cíclico sentido de ida e volta, de
saudades imperfeitas e sonhos mal resolvidos.
Ah, quanta juventude, levada a
ermo pelo som dos sonhos que esbarravam na falta de dinheiro. Tantos sonhos
límpidos, tanto Pink Floyd na veia, tanta vida pela janela do ônibus. Era a
selva da cidade, suas luzes e sons desfilavam na cadência mórbida do anoitecer,
enquanto criávamos soluções para os fins de semana sem grana. Viajávamos na
criatividade de nossa falta de opções, fazendo da simplicidade da amizade o
remédio mais barato para nossas aflições semanais. Discutíamos o mundo inteiro
em mesa de bar ou no ponto de ônibus, indo dos melhores desenhos animados às
crenças e ideologias políticas em que naquele tempo ainda valia à pena
acreditar.
Vivíamos. E nunca pagamos o preço
mais caro por isso. Nunca nos esquecemos de sorrir, nem de agradecer, nem de dividir
cumplicidade até das piadas mais sem graça. Vivemos. E nunca esquecemos nem dos
vãos momentos, das brigas sem sentido, dos projetos sem sentido, das risadas
sem sentido, de um mundo que se descortinava belo e perigoso à nossa frente.
Sem medo, derrubamos barreiras e
acompanhamos maravilhados a apoteose do muro de Berlim em sua noite de queda,
ouvimos tantas bombas nucleares que não saíram de seus botões, choramos por
Raul e Renato, amanhecemos nas ruas de Salvador enquanto era possível fazer
isso em paz. Fomos para as ruas, em marchas utópicas e excitantes, quando os
idealismos falavam mais alto que as conveniências pessoais e políticas, tempo
em que dava gosto ser de esquerda, em que moratória era o palavrão mais
revolucionário e admirado pelos simpatizantes da onda vermelha que deixava de
ser apenas uma ameaça comunista.
E herdamos de nós mesmos as
histórias que contaremos aos netos, inventando ainda mais cores e risos,
perfazendo altas doses de imaginação coletiva que se dissolve no caminho cego
da nossa lembrança seletiva e burra, que se esvai nos engarrafamentos de
pensamentos e carros com que nos esbarramos a cada dia.
Mais uma noite na varanda ouvindo
a sinfonia urbana do caos. Quanto mais longe, mais bonito, mais vertigens e
ilusões. Que saudade da cidade, que saudade de ter saudade do que não vivi, que
saudade da inocência, do tempo perdido, dos planos imediatos, dos medos
inoperantes, dos amigos que não vejo mais.
Não sei como não olhar pra trás e
ver a vida que deixei acenando para mim de um quarto fechado do meu destino. A
vida nos dá todas as escolhas possíveis, mas nos oferece um repertório limitado
quando mais precisamos dela. Assim é a lembrança: uma sombra, um sopro, uma
música viva, uma sinfonia de lágrimas inconstantes e sem razão.
Ainda não estou pronto. Preciso
transcender o presente e entender que nada na vida faz tanto sentido, e que
pairar sobre o ar em busca de explicações é como esperar que o tempo volte. Não
há volta, só em pensamento.
Eu vivi, nós vivemos. E fomos
felizes. O nosso merecimento foi a nossa defesa, o nosso maior pagamento. Fomos
éticos, leais e fortes, e o tempo nunca nos roubará tamanha virtude, nem nos
nossos piores sonhos. Viver é acreditar num caminho e trilhá-lo, por mais
difícil que seja. E eu não estava sozinho.
O tempo não vai voltar, não
seremos tão felizes de novo, porque a nossa inocência não será recuperada,
nosso momento não durará mais. Estamos ultrapassados, saudosistas e emotivos,
vivemos num plano de contemplação e espanto diante da aurora caótica do hoje. E
ainda somos um pouco felizes.
É estranho. Ajusto a música que
quero ouvir no site da internet, lembrando de como colocávamos as fitas no
deck. Os tempos são outros, e não sinto mais a brisa matinal da varanda,
dividindo os olhares com as luzes que permanecem acesas após o amanhecer.
O novo dia vem chegando. Eu
continuo aqui na varanda, projetando-me além do tempo, levando para um futuro
que não conheço um arremedo do passado que conquistei. E nunca estive sozinho.
Como aquele tempo me faz falta, meus amigos...
Nunca estaremos sozinhos!
ResponderExcluirSinto muita falta de todos vocês.
colegas temos muitos, amigos temos poucos, mas estes poucos verdadeiros valem por milhares, centenas...em um tempo que o horizonte é nublado e tempestuoso, o que vale e nos dá alento é olhar para trás e lembrar das boas coisas da vida...lembranças são eternas...hoje o mundo não é o mesmo, o tororó não é o mesmo, o santo antonio não é o mesmo, nem nós somos mais os mesmos...mas de uma coisa tenha certeza, a amizade é ainda mais forte...saudades dos tempos alkoolmaniacos
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