quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memórias de Amargosa





Memória é tudo o que resta quando mais nada parece fazer sentido. O problema é que neste país a memória é um artigo de luxo, e o passado vem sendo execrado e progressivamente destituído da memória popular graças aos arautos do futuro e a sua tecnologia consumista, que descartam os sopros do passado como se fossem inúteis e superados.
Portanto, apegando-me à memória da minha infância e juventude, e “pescando” nas famosas revistas que contam a história de Amargosa (é uma pena que boa parte do referencial histórico desta cidade esteja reduzido a isso...), resolvi escrever alguns textos em que vou desfiando o extenso novelo de minhas “memórias amargosenses”, regadas a flashes de memória e saudades, muitas saudades de tempos mágicos, coalhados de brilho e inocência, cheios de vida e tranqüilidade nas sombreadas ruas da Cidade Jardim.
Alerto aos desavisados leitores que não se trata de uma narração com um fluxo de tempo linear. Não: aqui tudo se dará pelo fluxo da memória, irregular e impreciso, portanto, em muitos momentos as lembranças viajarão anos, décadas, misturando lugares e personagens numa perspectiva pouco comum, mas espontânea. Boa viagem a todos nós!
Primeira parada: a praça do Cristo, ou melhor: a eterna praça da Feira. Em frente à delegacia, a feira de Melancias, que insistiam em rolar ladeira abaixo, junto também à feira do rolo, onde se trocava passarinho por bicicleta, rádio por canivete, quarta de farinha por jaleco de couro. Aquela feira na praça do Cristo era especial: aconchegante, barulhenta, mas de enorme dimensão: começava na delegacia e ia até à Caixa Econômica. Na parte de cima, a feira de roupas e confecções em geral, no meio, a feira da Carne, em baixo, frutas e verduras. No barracão em frente ao armazém de Josué, os sacos de farinha pintavam de branco o chão de calçamento. Ainda lembro da rua onde hoje é o calçadão: estreita e barulhenta, aos sábados era um milagre entrar de carro ali. Nessa rua ficava a sorveteria, não me lembro bem de quem era: a sorveteria Tropical. Lá também ficava o Frigoleite de seu Rufino e a locadora de Vídeos de Manolo, isso já na fase de Calçadão.
Não sei por que cargas d’água, mas sempre tive a impressão de que o Cristo da praça era virado pra outro lado, e já encontrei outros aloprados que comungam dessa idéia... Ali, na praça, na parte de baixo, ao lado da delegacia, ficava a Hits Brasil, loja de discos onde comprei meus primeiros LPs, isso, LPs! Foi lá que comprei o Quatro Estações do Legião Urbana. Adorava ficar olhando os discos e colocando-os pra ouvir na agulha da radiola. Lembro-me de tirar fotos lá em seu Nené, de tomar suco de coco no JequitiBar, ao som de Nelson Gonçalves. Como esquecer a Galeria Júnior e o salão de seu Agrimar, bem ali onde hoje Lula mostra seu talento hereditário na arte de cortar cabelos. Falando em galerias, lembro de El-Som, livraria onde minha mãe comprava os livros da escola, e que mais tarde serviria de alto-falante para a Jequitibá FM e os “recadinhos de amor” dos finais de tarde.
Ali perto, o armazém de seu Zé Bandeirante, onde se encontrava de tudo, a loja de confecções de seu Carlos “da Loja”, a Nunes Calçados e a boutique de dona Elza, que tinha as roupas mais descoladas da cidade. Ah... e como não lembrar das mensagens fúnebres do alto-falante das lojas A Boneca: até a voz do narrador era sinistra!
Ainda na praça, lembro do armarinho de Dona Marizete e da antiga Unilar, ao lado da DK-Um, a melhor padaria do universo!
Falando nisso a Dk-Um merece um parágrafo especial. Não exagero quando digo que era a melhor padaria do universo: tudo lá era mais gostoso (nunca um pão de sal com manteiga foi tão especial!), a própria padaria com seus armários de madeira tinha um aspecto aconchegante e tradicional. Todo dia, por volta das cinco da tarde, começava a luta pelos pães: pessoas e mais pessoas em busca dos seus pães, em sacos de pano que traziam de casa para o preço ficar mais em conta. Enquanto isso, Seu Arturzinho, Dona Diva, Diva, Oldack e Pisca tentavam atender a todos os esfomeados do crepúsculo. O café DK-Um também não tinha igual, e até a manteiga que eles vendiam parecia ser mais gostosa que as outras.
É preciso fazer justiça com as outras padarias, afinal neste quesito Amargosa sempre esteve bem servida: a Massa Real, de seu Zelito, a padaria de seu Jessé e a de seu Paixão, onde eu namorava os brinquedos nas vitrines de vidro e onde no Natal eu fazia a festa, realizando os desejos que Papai Noel não mais podia realizar. Tempo depois, também na praça, veio a Kivalle, a primeira delicatessen de Amargosa, sofisticada e com o melhor sonho que eu já comi em minha vida. Já era tempo da nova e bela praça do Cristo.
Ainda consigo sentir aquele maravilhoso cheiro de café torrado do Café Santa Graça, em plena praça no centro de Amargosa. Ali do lado estava a antiga sede da agência da Caixa Econômica, bem menor que a atual, e onde por algum tempo funcionou a Prefeitura Municipal, quando da reforma do prédio original, na última gestão de Josué Melo como prefeito. Ali perto, a insuperável Farmácia do povo, de seu Zé “da Farmácia”, a farmácia Luciane de seu Nelito e as lojas A Boneca de seu João Ângelo.
Bom, meu trem da memória para um pouquinho pra recuperar as forças, quer dizer as memórias. A próxima viagem, no entanto, não tarda em começar...

12 comentários:

  1. Adorei a iniciativa para os textos vindos da memória, Dé. Confesso que adorei e viajei aqui, imaginando através das suas lembranças como Amargosa era. Incrível! Adorei.

    ResponderExcluir
  2. PARABÉNS! Excelente idéia, de nos levar a fazer uma maravilhosa retrospectiva de uma época saudosa. Você me fez recordar da minha feliz infância, vivenciada exatamente como você descreveu! Muitos filhos da terra que tiveram as mesmas experiências que nós, ficarão felizes com este espaço.
    Uma sugestão: divulgar algumas poesias que falam de fortes lembranças da terra.

    ResponderExcluir
  3. Meu Deus, André...você trouxe tantas recordações em um só texto, que eu não consigo parar de sorrir até agora. Que massa!!!
    Não tenho todas essas memórias, por que talvez sejamos de épocas diferentes, ou melhor, somos! Mas algumas lembranças manifestadas por você são tão "simpáticas" que se tornaram similiares ao sentimento que tenho à elas. Ou pelo menos à algumas delas.
    Lembranças como o Frigolac de seu Rufino (que ótimo! rs...), eu ia sempre comprar leite lá; os "recadinhos de amor" foi o melhor!!! Eu sempre ia pra casa, quando saia da escola ( o CEA, na época), ouvindo as mensagens de amor. Váriossss trotes! kkkkkkkkk...
    Concordo com vc em gênero, número e grau quando diz: "Memória é tudo o que resta quando mais nada parece fazer sentido". (GALVÃO, 2011). hehehe...
    Muito bom...

    Parabéns pelo Blog!

    ResponderExcluir
  4. ô, meu caro, permita-me contribuir com sua memória: na lista de funcionários da DK-Um, tinha o Geraldo também. Nossa, como era dispudada a fornada do pão de sal quentinho, lembra? Qto à sorveteria do calçadão, era de D. Neusa, a mesma Sra. de quem compramos gelo na R. Nova. Também viajei contigo nos detalhes narrados. Lembrei-me também da época em que era divertido azucrinar os pobres vigilantes do "Jardinho" (só p os íntimos), sendo com frases rimadas ou insistindo em andar de bicicleta por dentro dele. Ô saudades.
    Grande abraço.

    ResponderExcluir
  5. Quanta saudade desse período...
    O Calçadão era o Beco da Lira! Tinha a farmácia de Seu Clarete (pai de Manolo), o IBGE, a loja de Tomás, a Magazine Sandra de Italino, e, lógico, o inesquecível Frigoleite.
    Muito bom lembrar desse período!

    ResponderExcluir
  6. Gente....retificando meu comentário, não era o Frigolac, e sim, Frigoleite!!! Ops...mas lembro demais...Seu Rufino é gente boa!!!
    Esse texto me fez lembrar até do cheiro de alguns locais! Muitooo bommmm!

    ResponderExcluir
  7. Muito obrigado, Amigos. A participação de vocês e de todos que acessam este blog é a maior razão para que eu continue escrevendo. Abraço!

    ResponderExcluir
  8. Gostaria de saber notícias de pessoas daí. É para a servente que trabalha na mesma escola. É a srª Ângela Maria de Jesus, viúva do sr. Manoel Cazuza dos Santos. Talvez o sr. Valdivino Gonçalves de Almeida viva em S. Roque, pois ela disse que ele tinha retornado de S. Paulo. O nome dela é Maria da Gloria Gonsalves, anexou da Silva do esposo. Tem uma irmâ de nome Natalia Gonçalves. Disse-me hoje que veio muito nova, com uma família para o Rio de Janeiro. Se alguém poder dar notícias, agradeço, meu e-mail é oelcosodrac@ig.com.br.

    ResponderExcluir
  9. Texto maravilhoso! Sou jovem (não vivi os tempos dourados descritos) mas cada memória reanimada nesse texto é como se fosse minha também.

    ResponderExcluir
  10. André, duas casas comerciais que deveriam ser lembradas: A venda do sr. Odilio que tinha de tudo e a venda de sr. Vivi.Parabens por nos presentear com tantas recordações.

    ResponderExcluir
  11. Registrar também a Padaria de João Lopes, com o pão carioca, o Bar de Geraldino e o sinuca de Lino, que também engraxava sapatos. Saudades da ferrovia Estrada de Ferro Nazaré, com a sua locomotiva 30. Parabéns pelas narrativas que nos leva a bons tempos vividos na Terra do Jequitibá

    ResponderExcluir